Trabalho intermitente volta a crescer em meio à crise da pandemia

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27 de julho de 2020

Trabalho intermitente volta a crescer em meio à crise da pandemia

Dados do Caged mostram que a ocupação intermitente voltou a crescer em meio à reabertura das atividades comerciais. Em restaurantes, que costumam pagar somente as horas efetivamente trabalhadas, instabilidade da relação mais flexível preocupa entidades trabalhistas

Criado na reforma trabalhista de 2017, o contrato de trabalho intermitente voltou ao radar dos empresários brasileiros em meio à flexibilização da quarentena. É que esse tipo de contrato permite que as empresas chamem os funcionários apenas quando há demanda e, por isso, paguem somente as horas efetivamente trabalhadas. É uma relação mais flexível de trabalho, que, para muitos executivos, parece se adequar a esse momento em que é preciso reabrir as portas, mas com muita cautela em relação à retomada econômica e à pandemia do novo coronavírus. E que, por isso, é o primeiro dado do mercado de trabalho brasileiro a apresentar alguma reação após a covid-19.

De acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o Brasil perdeu 331,9 mil postos de trabalho formais em maio (último dado disponível) devido à crise econômica do novo coronavírus. E esse fechamento foi praticamente generalizado. Nos contratos intermitentes, contudo, 2,4 mil vagas foram criadas nesse período. Por isso, por mais que tenha seguido o choque da covid e fechado o mês anterior no vermelho, essa modalidade de trabalho acumula um saldo positivo de 16 mil vagas no ano. “É um número pequeno em relação ao estoque de emprego formal, mas mostra que o intermitente registrou uma situação um pouco melhor na pandemia”, observa o pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), Daniel Duque. E muitos empresários dizem que esse número tende a crescer nos próximos meses, sobretudo, no setor de comércio e serviços, que trabalha sob demanda.

“O contrato intermitente permite que o estabelecimento ajuste a mão de obra aos horários de maior demanda. E deve ser uma opção agora, já que muita gente acabou sendo demitida durante a pandemia e a retomada precisa ser muito cautelosa, sem muitos custos”, diz o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci. “Há muita incerteza sobre a retomada, se o movimento vai voltar logo ou se virá de forma gradual. Além disso, temos uma limitação física de 50% dos espaços. Isso por si só inibe a realização de novos contratos integrais. E até os trabalhadores estão em uma situação delicada, porque muitos foram demitidos. Sendo assim, é melhor trabalhar dois ou três dias na semana a ficar parado. Então, parece que chegou o momento adequado para tratar disso”, reitera o presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes do Distrito Federal (Sindhobar), Jael Silva.Continua depois da publicidade

Foi o que aconteceu no restaurante coordenado pela diretora comercial Juliana Britto. Ela conta que os contratos intermitentes foram a saída encontrada pelo estabelecimento para reabrir as portas esta semana. Isso porque, após quatro meses fechados, o estabelecimento demitiu metade dos seus funcionários e segue com o orçamento apertado para recontratar esse pessoal. Por isso, agora, decidiu chamar alguns garçons de forma intermitente para poder avaliar o movimento dos primeiros dias de reabertura. E eles logo aceitaram o chamado, já que estavam há um bom tempo sem trabalhar de maneira formal. “Começamos com os intermitentes 15 dias antes da pandemia. Na quarentena, nós fechamos e eles receberam o auxílio do governo. E, agora, estamos começando a chamá-los de volta. Não pretendemos abrir novas vagas de emprego nem tão cedo. Então, havendo necessidade, vamos chamar os intermitentes”, explica Juliana, que paga aos garçons o mesmo valor da hora de trabalho dos demais profissionais do restaurante. “Inclusive, as gorjetas”, conta.

Flexibilidade

Segundo a legislação instituída pela reforma trabalhista, o contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e não se pode pagar um salário/hora inferior ao valor que é pago pelo salário-mínimo ou ao valor que o estabelecimento paga para os outros profissionais que ocupam a mesma posição do intermitente. Porém, é um contrato flexível e sem carga horária fixa. A empresa chama o trabalhador quando tem necessidade. Só precisa fazer essa convocação com pelo menos três dias de antecedência. O funcionário tem um dia útil para responder e não sofre nenhuma punição se recusar a oferta. Ele pode até ter contrato com mais de uma empresa, já que não tem horário fixo com seus empregadores. Ao final do mês, portanto, empresa e empregado fazem um apurado das horas trabalhadas no período para definir qual será o salário. Sobre esse valor, contudo, também devem ser pagos os proporcionais dos benefícios trabalhistas, da Previdência e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

“O contrato intermitente ainda não é tão usado quanto se esperava na reforma trabalhista, porque o Brasil sempre sofreu muito com insegurança jurídica e esse tipo de contrato gerou algumas dúvidas. Então, era de se esperar que levasse um tempo para sua consolidação jurídica. Além disso, o mercado de trabalho vinha se recuperando de forma muito lenta, sem grandes contratações, entre 2017 e 2019. Mas, agora, é possível que apareça mais, já que nenhum empresário sabe como vai ser essa retomada da pandemia e todos estão sofrendo uma maior pressão de custos. Então, eles podem querer migrar para modelos mais flexíveis e poupadores de mão de obra como o contrato intermitente”, confirma o pesquisador Daniel Duque. “É algo que deve crescer. A tendência é que, com a reabertura, tenha um salto nas contratações”, avaliou Solmucci, para quem essa tendência não deve ser temporária no setor de bares e restaurantes. “Nos Estados Unidos, essa é uma modalidade muito comum, que funciona muito bem para o setor”, explica.

Uma renda mínima no fim do mês

O contrato de trabalho intermitente ainda é visto com ressalvas por muitas entidades trabalhistas. É que, pela sua flexibilidade, essa modalidade de emprego não oferece ao trabalhador a garantia de que ele terá uma renda mínima ao fim do mês. Pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revela que até 40% dos vínculos intermitentes existentes no Brasil chegaram a passar um mês inteiro sem registrar nenhuma hora de trabalho e, portanto, não apresentaram rendimento no fim de 2018.

“O contrato intermitente dá liberdade para o empregador, que consegue fazer uma contratação que se adequa à demanda dele. Se aumentar a demanda, aumenta a mão de obra. Se diminui, também consegue diminuir rapidamente, sem custos. Porém, é um contrato que dá uma insegurança muito grande para o trabalhador. Muitos não sabem se vão ser mesmo chamados no fim de semana ou no próximo mês. Então, não sabem quanto vão ganhar no fim do mês”, pontua o economista do Dieese, Gustavo Monteiro.Continua depois da publicidade

Isso fica claro em uma pesquisa realizada no início deste ano pelo Dieese, com os dados da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério da Economia 2018 — a última disponibilizada pelo governo. Segundo o estudo, no ano posterior à reforma trabalhista, que prometia gerar 14 milhões de postos de trabalho intermitentes no país ao longo de 10 anos, foram registrados 87 mil contratos desse tipo no Brasil. Porém, só 62 mil estavam ativos no fim do ano. E boa parte deles não foi efetivamente utilizada.

De acordo com o Dieese, um de cada dez contratos de trabalho intermitente registrados naquele ano não gerou nenhuma renda para o funcionário, pois 11% desses trabalhadores nunca foram chamados para trabalhar. E essa proporção foi ainda maior em dezembro de 2018: 40% dos intermitentes não trabalharam no mês, mesmo diante das contratações temporárias de fim de ano no setor de comércio e serviços. “Diante disso, fica até mais difícil saber o tamanho real do desemprego, porque tem gente que tem um contrato intermitente, mas não trabalha efetivamente”, pontua Monteiro.

“O contrato de trabalho intermitente flexibiliza as relações trabalhistas e gera uma precarização para o trabalhador, porque ele fica dependente da demanda da empresa”, confirma o advogado trabalhista André Costa. Ele diz, então, que é preciso ficar atento a todas as cláusulas antes de assinar um contrato desse tipo. E lembra que o sindicato trabalhista deve intervir em negociações coletivas, que podem vir a ocorrer agora no pós-pandemia, caso as empresas queiram contratar trabalhadores que foram demitidos na quarentena por contratos mais flexíveis e mais baratos como intermitente.

 

 

 

Fonte: Correio Braziliense / MB Marina Barbosa